Chamada pública – Bixas pretas: dissidências, memórias e afetividades
O heteropatriarcalismo do Ocidente, constante nas culturas negras metropolitanas, mostra resistência à visibilidade dos legados políticos e, em alguns aspectos, contra culturais de pessoas negras sexo/gênero discordantes. Predominantemente, a maioria das nossas referências de ativismo e militância são homens e mulheres negrxs heterocentradxs e cisgêneros, bem como a intelectualidade e as artes negras estabelecem o princípio da heterossexualidade compulsória implícita nos ideais racializados, oferecendo-lhe uma ilusória autenticidade. Falar de James Baldwin, Bárbara Smith, Audre Lorde, Angela Davis, Bayard Rustin, Marsha P. Johnson, Bessie Smith, Emile Griffith, Marlon Riggs, Madame Satã, Joãozinho da Goméia, Mário Gusmão, Jorge Lafond, dentre inúmeros outrxs negrxs das dissidências sexuais e de gênero, é falar de um profundo processo de silenciamento e asfixia da história de parte da memória negra. Essas referências sempre desenvolveram relações de coalizão e cooperação política com movimentos negros na história, visto o indiscutível caráter estrutural da raça, porém seus legados são extremamente negligenciados.
A heterocentricidade negra, as incapacidades e deficiências ideológicas dos movimentos negros no decorrer da história em tratar questões sexuais e de gênero, bem como o grande desafio de estabelecimento de políticas de coalizão, estereotiparam o Movimento LGBTIA+ – na década de 1970 ainda Movimento Gay – como um movimento exterior ao Movimento Negro, um problema alheio à agenda de lutas antirracistas que poderia se fortalecer na orquestração de forças políticas reativas. É interessante perceber que na mesma década surgiram coletivos como o Combahee River, fundado por mulheres negras lésbicas como a já supracitada Bárbara Smith, para atender não somente a situação e demandas políticas das mulheres negras subincluídas pelo Movimento Negro e superincluídas pelo Movimento Feminista mainstream, mas também para superar a superexclusão de ambos os movimentos de ativismo e militância, por causa de suas sexualidades e problemas específicos que emergem das dinâmicas interseccionais entre raça, gênero, classe e outros marcadores das diferenças sociais. De acordo com Kimberlé Crenshaw, o fenômeno da subinclusão de mulheres negras no Movimento Negro é decorrente da ausência de reconhecimento e problematização de gênero na agenda política negra; por sua vez, o fenômeno da superinclusão é decorrente da ausência de reconhecimento e problematização das questões raciais na agenda política feminista. O problema se torna ainda mais grave quando a heterocentricidade e cisgeneridade da agenda política de ambos os movimentos superexcluem as mulheres negras das dissidências sexuais e de gênero, complexificando suas posicionalidades a partir de uma perspectiva existencial que só pode se tornar inteligível na interseccionalidade, através do status caracterizado por Patricia Hill Collins como outsider within: um mal-estar constante provocado por, simultaneamente, pertencer e não-pertencer a determinado lugar, em um estado de permanente interdição e fragmentação constante causado pela incompreensão da natureza interligada das opressões pelos movimentos políticos.
Inspiradxs no pensamento de mulheres negras como Carla Akotirene, a interseccionalidade constitui nossa principal ferramenta epistemológica e política, principalmente para o exercício de identificação das inúmeras formas de subjugação e subordinação dos sujeitos, para a percepção e análise das complexas dinâmicas de interação entre os marcadores de diferenciação sociocultural, bem como enquanto um paradigma ético para diagnóstico das causas e consequências das discriminações, sendo este de principal responsabilidade das instituições de direitos humanos, aparelhos e órgãos estatais governamentais. Há uma profunda simbiose entre as categorias de diferenciação raça e gênero, visto que os sujeitos vivenciam a raça a partir do gênero. Assim, homens negros e mulheres negras mesmo compartilhando experiências de discriminações em comum, interpelados pela mesma matriz estrutural de opressão (raça), possuem experiências específicas e distintas engendradas a partir das dinâmicas de emparelhamento de outras matrizes e marcadores da diferença, além da inevitável incidência de suas subjetividades. As dinâmicas interseccionais interpelam os sujeitos nos campos de força gerando problemas, vulnerabilidades, assimetrias de poder e desigualdades sociais específicos. Há um profundo processo de invisibilização e negligência das experiências interseccionais vivenciadas pelos sujeitos, compreendidos sempre de maneira artificial, insuficiente e equívoca na elaboração de políticas públicas e garantia de direitos civis, que na maioria das vezes não consideram as suas complexas posicionalidades nas hierarquias de poder e a singularidade das suas vulnerabilidades e opressões sofridas.
A existência de pessoas sexo-gênero discordantes nas comunidades negras, bem como seus fluxos afrodiaspóricos pelo mundo, só é possível na reinvidicação, delimitação e ocupação de um lócus fraturado, um entre-lugar no qual somos sujeitos outsider whithin: a condição de sermos negrxs proporciona nossa superinclusão entre as comunidades e movimentos negrxs, porém sofremos, simultaneamente, com a subinclusão e até mesmo hiperexclusão por nossa condição enquanto pessoas LGBTA+, que nos tornam forasteirxs em terras conhecidas. A experiência da negritude, apesar de plural e múltipla na diáspora negra, é profundamente interpelada por normatividades coloniais que estabelecem a cisgeneridade e heterossexualidade compulsória como os únicos paradigmas existenciais possíveis para os homens e mulheres racializadxs. Ser negro e LGBTIA+ nos transformam em anomalias e aberrações para os nossxs próprixs semelhantes, pois já existem instaurados o pânico e o medo dos processos de desumanização causados pelo estigma racial. Gênero é uma tecnologia para a inteligibilidade social, visto que só seres humanos são capazes de performatizar identidades sexuais e de gênero. Porém, para as pessoas negras são tecnologias que funcionam a partir de uma programação da necropolítica, reproduzindo cotidianamente uma cultura de terror, violência e extermínio das populações negras, que tem aumentado de maneira vertiginosa o genocídio de homens negros, feminicídio e LGBTIA+fobias na atualidade.
O livro que propomos organizar e publicar é de e para essas pessoas. Sensibilizando todas as pessoas negras das dissidências sexuais e de gênero para seleção e publicação de nossas produções científicas, intelectuais e artístico-culturais interditadas e silenciadas historicamente, subjugadas pelo regime de esquecimento nas zonas de abjeção nas quais fomos lançadxs. Propomos sermos vanguarda para políticas epistêmicas afrofuturistas, pois a destruição das matrizes estruturais de opressão não acontecerá sem nós.
NORMAS PARA OS ARTIGOS
Os textos completos deverão ser encaminhados para o e-mail bixaspretasdevires@gmail.com, adequados conforme as normas descritas a seguir:
- Os arquivos devem possuir formato .doc
- Tamanho do papel no formato: A4
- Fonte: Times New Roman
- Tamanho da fonte: 12
- Espaçamento entre linhas: 1,5
- Número de páginas: entre 8 e 15 páginas, incluindo as referências
- Margens: superior e inferior 2,5; esquerda e direita 3,0
- Alinhamento: justificado
- Título: maiúsculo, centralizado e em negrito
- Nome dx autora/autor: alinhado à direita, depois de uma linha de espaço do título
- Vinculação institucional: abaixo do nome dx autora/autor, alinhado à direita
- Endereço eletrônico: abaixo da vinculação institucional, alinhado à direita
- Resumo com 2.500 a 3.000 caracteres com espaço, espaço simples entre linhas e três a cinco palavras-chave
- Citações e referências devem seguir as recomendações da ABNT.
CRONOGRAMA
8/9: Data limite para envio dos artigos
Setembro/Outubro: Seleção dos artigos pela comissão avaliadora
Outubro: Divulgação dos artigos selecionados e envio dos pareceres
Novembro: Envio da versão final dos artigos
ORGANIZADORES / COMISSÃO AVALIADORA
David Souza
Mestre em Cultura e Sociedade – Universidade Federal da Bahia (Pós-Cultura/UFBA)
Bacharel em Humanidades – Universidade Federal da Bahia
Pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS/UFBA)
Daniel dos Santos (DanDan)
Doutorando em Mulheres, Gênero e Feminismo – Universidade Federal da Bahia (PPGNEIM/UFBA)
Mestre em Cultura e Sociedade – Universidade Federal da Bahia (Pós-Cultura/UFBA)
Licenciado em História – Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
Vinícius Zacarias
Doutorando em Estudos Étnicos e Africanos – Universidade Federal da Bahia (POSAFRO/UFBA)
Mestre em Ciências Sociais – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (PPGCS/UFRB)
Bacharel em Museologia – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)