Brasil vive “epidemia descontrolada” de Aids, diz presidente do Grupo Pela Vidda

Genilson Coutinho,
25/06/2012 | 10h06


O presidente do Grupo Pela Vidda, organização não-governamental dedicada ao combate à Aids, o psicanalista George Gouvea vem denunciando as falhas do programa DST/Aids do Ministério da Saúde. Para ele, o Brasil vive uma “epidemia descontrolada”, ao contrário da palavra oficial do Ministério que reafirma controle da doença.

Os números oficiais dão essa certeza ao presidente do Pela Vidda. Nos últimos dez anos, pelo menos 102 mil soropositivos morreram no país e 311 mil novos casos foram notificados (dados consolidados até 2010). Apesar de os números anuais não sofrerem grandes variações (média de 11 mil mortes e 34 mil novos casos por ano), Gouvea critica o uso do termo “estabilidade” para classificar os números no Brasil. “Seria o mesmo que considerar 10 mil mortes de judeus por ano no holocausto um número estável”, diz.

Em recente publicação, a Fiocruz, órgão do Governo Federal, pediu uma “correção de rumo” para o programa DST/Aids no país. “Ao contrário do que se tem observado em outros países que também instituíram programas de acesso universal ao tratamento e têm observado queda na incidência de novas infecções, o Brasil não tem conseguido diminuir a incidência do HIV/Aids”, aponta o documento.

Para o presidente da ONG, campanhas de prevenção à Aids devem contar com a participação do público-alvo para a obtenção de resultados positivos.”Não tem como eu ir para uma esquina falar com uma travesti sobre prevenção, a travesti vai rir da minha cara e tem toda a razão de fazer isso”. O Grupo Pela Vidda atende cerca de 300 pessoas por mês e realiza assistência jurídica, reuniões de acolhimento e palestras, entre outras atividades.

UOL – Por que você afirma que vivemos uma “epidemia descontrolada” de Aids no país?

George Gouvea – A gente não pode admitir que existam aproximadamente 35 mil novos casos de infecção pelo vírus HIV por ano. Em dados apurados em 10 anos, até 2010, a gente vai encontrar quase 350 mil novos casos de pessoas se descobrindo soropositivas. Eu não sei que estabilidade é essa. É a estabilidade da vergonha. A gente não pode se acomodar e achar que 35 mil novos casos por ano são poucos casos. A gente não pode achar que quase 12 mil óbitos por ano seja um número interessante. Que estabilidade é essa que o governo, que o Ministério da Saúde diz? É a estabilidade da morte?

UOL – O que está errado no programa DST/Aids?

Gouvea – Muita coisa está errada. Nós temos um bom programa de Aids, ninguém pode dizer o contrário. A distribuição de retrovirais como política pública de saúde é realmente um marco, a gente não pode deixar de reconhecer. Mas não pode ser só isso. Não se pode apenas disponibilizar o remédio na boca da farmácia e dizer tchau, até logo. É preciso a criação de programas permanentes de prevenção, políticas, estratégias, esclarecimentos, tudo isso junto com a sociedade. Não é possível que a gente ouça a palavra Aids quando chega o verão e durante o Carnaval. É preciso se falar de Aids durante o ano todo, todos os dias. Eu deveria entrar no metrô e ver todos os dias um pôster falando de HIV. As crianças e os jovens precisam entrar nas escolas e ouvir sobre HIV. Eu fico imaginando a quantidade de pessoas que sequer ouvem a palavra Aids por meses. O assunto HIV deveria fazer parte do cotidiano da sociedade. O governo tem parcela de responsabilidade porque ele é um incentivador. Obviamente não pode fazer tudo, mas tem um papel de fomentar de provocar, de instigar e isso não está sendo feito.

UOL – No recente livro publicado pela Fiocruz, um dos problemas apontados é a questão do diagnóstico tardio. 

Gouvea – Nós temos hoje no Brasil um índice de quase 50% de diagnóstico tardio, que é quando o sujeito se descobre com HIV já doente. Ele vai gerar uma série de custos por conta do diagnóstico tardio. Esse sujeito, quando interna, gera um custo com a permanência no hospital. Ele vai pedir licença do trabalho gerando custo para a previdência social. Mas o pior de todas essas coisas que eu acabei de falar é o sofrimento humano ao adoecer. Isso tudo poderia ser resolvido com um plano de testagem eficiente. Por que hoje nós não temos nenhum plano de testagem? Hoje existem centros de testagem a penas nas grandes cidades. É uma questão política, um cinismo para parecer que tudo funciona bem.

UOL – Não é interessante para o governo a criação de mais centros de testagem?

Gouvea – Se mais polos de testagem forem criados, vai demandar mais assistência porque mais pessoas serão diagnosticadas e essa demanda de pessoas soropositivas não vai encontrar atendimento. Se o número de testagens aumentar nós vamos ter o caos no atendimento.

UOL – A epidemia teve um crescimento espantoso na Região Norte. De 1998 a 2010 a incidência da Aids aumentou em 237,7%… 

Gouvea – A tendência de uma epidemia descontrolada é que vá para o interior, é a interiorização. Se olharmos o mapa do HIV no Brasil se verifica essa tendência. Se nós já temos problemas nas grandes capitais eu fico imaginando o que será do interior.



UOL – E como você interpreta a vulnerabilidade do jovem gay apontada no boletim do Ministério da Saúde?

Gouvea – É comum a gente ler reportagens que dizem que está tendo mais casos com uma parcela da população. Mulheres, idosos, jovens gays. Na verdade essa é uma forma estranha de ver as coisas. O que existe é o HIV se espalhando por todo o tecido social, essa que é a realidade. Por esse motivo a gente deve ter políticas que atendam as demandas de todos os segmentos de todas as regiões do país. Eu não posso falar de HIV com um jovem gay da mesma forma que eu falo com uma pessoa da terceira idade. Se a gente não respeitar a diversidade de cada segmento fica difícil a informação chegar.


UOL – O que um paciente soropositivo enfrenta, hoje, para conseguir atendimento?

Um indivíduo que se descobre soropositivo sem estar doente só consegue uma consulta depois de quatro, cinco meses. E é fundamental esse primeiro contato com o médico, porque é ele que vai esclarecer, que vai acalmar esse paciente que procura a unidade de saúde achando que vai morrer. Depois de conseguir a primeira consulta, ele vai precisar fazer um exame de sangue. Esses exames em geral demoram mais de trinta dias para ficarem prontos , o que é outro absurdo, já que na rede privada os mesmos exames ficam prontos em cinco dias. Depois, para retornar ao médico com os exames, mais quatro, cinco meses. Então esse paciente espera quase um ano para o encaminhamento do tratamento dele.

UOL – E se esse paciente se descobre com HIV já com os sintomas das doenças que afetam o sistema imunológico. O que ele enfrenta na rede pública de saúde?

Se já é um paciente doente que já apresenta a manifestação das doenças oportunistas por já estar com o sistema imunológico debilitado, esse sujeito interna e começa a sua via crucis. Ele tem de contar com a sorte de cair com um médico que perceba se tratar de um caso de HIV, mas o que geralmente acontece é o paciente chegar com, por exemplo, tuberculose em um hospital e apenas essa doença oportunista ser tratada. Não vai adiantar muita coisa. Essa pessoa fica misturada a outros pacientes, exposta a pegar outras doenças. Essa falta de estrutura da rede de saúde em todo o país resulta nesses quase 12 mil óbitos por ano. São mais de 30 por dia. É como se todo dia um ônibus caísse em uma ribanceira. Na Guerra da Síria já morreram 14 mil pessoas e a ONU está alarmada achando um crime contra a humanidade. Aqui morrem 12 mil pessoas por ano de Aids e todo mundo acha que é normal. Que estabilidade é essa?

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