Boate Is’Kiss marcou época em Salvador servindo caruru e fomentando disputas de ego.

Genilson Coutinho,
30/04/2013 | 14h04


É impossível falar da vida gay de Salvador e não lembrar os bons tempos e as noites fervidas da Rua Carlos Gomes, local que abrigou o apogeu da cena LGBT da cidade por pelo menos duas décadas e onde os letreiros de neon anunciavam a abertura das casas noturnas.
É justamente nesse lugar que o saudosismo bate forte no coração de homens e mulheres que viveram grandes amores, e boa parte de suas histórias de vida, nos bares e casas noturnas daquela região numa época onde os adjetivos pejorativos “bichas”, “travestis”, “sapatões” e “entendidos” faziam parte do vocabulário dos preconceituosos para classificar os frequentadores da Carlos Gomes.
Essa sensação de saudade é bem definida por Marina Garlen, uma das damas do transformismo baiano, que não esconde a emoção quando fala sobre a cena nessa área, em especial na boate Is’Kiss, dos empresários Florêncio e Antonio Jorge, localizada no finalzinho da Carlos Gomes, próximo ao Cine Bahia, hoje Igreja Universal (como quase todos os espaços de arte dessa cidade) e que embalou a vida de muita gente nas madrugadas.
Marina, além de frequentar a casa para se divertir, conta que lá foi também palco da sua carreira de ator transformista. “Passava uma temporada fora do Brasil, mas quando voltava sempre estava lá para prestigiar os shows das minhas amigas Dion Santtyago, Tanucha Taylor, Rosana Salvatore, Lady Dai, Bagageryer Spilberg, Lion Schinaider, Di Marques, Nina Vogue, Pâmela Raya, Ionara Taylon, dentre outras estrelas da cena.” Era uma das poucas casas, na época, que abria as portas para shows, além da Tropical e da Boate Caverna. “Vi muita gente se profissionalizando lá”, conta Marina.
Outro que não esquece a casa é Marcos Assis, 54 anos. Ele não tirou da memória o entra e sai da casa e as festas que eram organizadas. “Lembro como se fosse hoje da escada enorme que beirava a porta de entrada, ali os beijos eram muitos. Um espaço onde era possível ficar juntinho e paquerar longe do barulho e dos espelhos do salão, onde todas queriam se ver dançando, como se fosse um fetiche. A iluminação não era como a de hoje, mas tinha aquele globo no salão e uns canhões de luzes que davam conta do recado. Sem falar no caruru que a casa oferecia no mês de novembro, mês dedicado a Santa Bárbara, portanto, o traje vermelho era obrigatório. Eu não perdia esse dia por nada”, revela Assis com a voz embaçada.
Beleza
Além do caruru, a casa tinha espaço para a celebração da beleza no concurso Miss Is’Kiss, apresentado por André Luis, o famoso Bagageryer Spilberg. O concurso era um dos eventos mais concorridos da casa e o ponto alto da beleza gay, com candidatas fortíssimas como as belíssimas Laisla Plewinsky (já falecida) e a Andrea Venâncio, que juntas brigavam pelo título da mais bela da boate. Mas quem pensa que era só isso, está enganado, pois Bagageryer lotava as noites de sextas-feiras com seu show “Yes, nós temos Bagageryer”. Para completar, sempre tinha a presença entre um show e outros de convidados especiais como o querido Jorge Lafond, falecido em 2003, que abalou as estruturas da boate durante uma entrevista para Baga, como é carinhosamente chamado entre os mais próximo.
Questionado sobre o que lhe traz saudades desta época, Baga revela com um tom saudosista, “Sinto saudade dos amigos que se foram e dos bons momentos vividos nas noites de sexta”. A casa foi fechada entre o fim de 1996 e início de 1997, deixando uma enorme lacuna no cenário LGBT. Os proprietários vivem na cidade, porém com atividades fora do circuito gay.
Corre!
A cena LGBT na Rua Carlos Gomes não era feita somente de alegrias como contou Martinha, ou melhor, Marta Sá, como ela era conhecida no circuito pelas colegas de profissão. Com seus 57 anos bem vividos, a travesti revela não esconder as alegrias e a correria da polícia nas ruas. “Era uma loucura, eles nos prendiam, ameaçavam e nos batiam muito. Com o passar do tempo e com tantas prisões fomos aprendendo muitos truques. Colocávamos a gilete na boca e mastigávamos, quando eles percebiam o sangramento ficavam loucos e nos deixavam ir embora. Veja aqui minhas gengivas como são todas cortadas, as marcas do caminho encontrado para libertação da prisão. Era uma perseguição do cão”, desabafa ela.

A artista revela que ainda hoje tem pânico desse período de sofrimento nas madrugadas e da correria da policia. E que inclusive já procurou grupos tortura para denunciar esse abuso, mas não deu em nada. Sobre os tempos atuais, ela é taxativa. “Hoje os tempos são melhores, pois temos mais liberdade e gente para nos defender.” “Elas estão no céu”, diz Martinha se referido às travestis de Salvador. “Hoje elas podem tudo sem a pressão da polícia”, conta entre uma baforada de cigarro e o olho na oficina de teatro no quintal da sede do Grupo Gay da Bahia, cenário da nossa conversa interrompida com a chegada do lanche servido com o final da oficina.

Matéria publicada na revista H MAGAZINE #9 do mês de Abril
Por Genilson Coutinho
Foto: Arquivo pessoal do ator transformista Bagageryer Spilberg