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Atrás da estante: Da Circus of Books nos EUA à Queens em Salvador por Filipe Cerqueira

Filipe Cerqueira,
29/05/2020 | 18h05

Filipe Cerqueira

O misto de livraria/locadora/sex shop Circus of Books, do documentário Atrás da Estante (disponível na Netflix), hoje pode ser encarado como “apenas” um estabelecimento gay, ou mais um ponto comercial em meio a tantos no mercado. Mas a Circus foi fundada no início da década de 80, onde o acesso a qualquer tipo de produto relacionado a comunidade LGBT era considerado crime/subversão extrema. Chega a ser engraçado ver seus donos não conseguindo enxergar a importância que tiveram para a comunidade LGBT dos EUA, justamente por verem seu negócio como mais um em meio à multidão. Fazendo um movimento contrário, a comunidade LGBT, principalmente a gay, considera o negócio do casal Karen e Barry Mason pertencente ao histórico de luta a favor das pessoas queers estadunidenses.


O filme, dirigido pela filha do casal, Rachel Mason, conta o trajeto da locadora desde sua fundação no final da década de 70, como um “passar chuva” frente ao desespero de seus pais em ganhar dinheiro para sustentar os filhos, até seu fechamento anos atrás com a falência desse tipo de estabelecimento com a expansão da cultura queer pela internet. Rachel vem de uma família tradicional judaica. Com todos os arquétipos preconceituosos da visão religiosa sobre a comunidade gay. Ela como diretora, sabe reconhecer o contraditório como achado para manter o público interessado, intercalando o inusitado casal envolto a um comercio pornográfico e um marco da contra cultura de seu país.
Como um casal careta heterossexual, pais de três crianças, presenciando o BUM da AIDS, vão se envolver em um negocio deste tipo, chegando até os dois a serem produtores de vídeos pornôs gays responsável por construir o nome de grandes astros nesse tipo de indústria?
Rachel, documentarista e personagem do filme, entrevista não só seus pais (donos dos momentos mais loucos do filme) como seus irmãos, funcionários da loja, produtores, atores pornôs famosos, chegando ao ápice de ter o depoimento de ninguém mais que o lendário dono da Hustler, Larry Flynt. Intercalando os depoimentos com lendas, historias verdadeiras e documentos de época, ela tece esse emaranhado inusitado do mundo louco em que seus pais viviam.


Para quem viveu a década de 90 e 2000 em Salvador, impossível assistir ao documentário e não lembrar da Queens Club do empresário André Cupolo situada em um casarão no bairro dos Barris. Misto de boate, livraria, locadora pornô ou de filmes temático LGBT, sex shop, cabines e bar, a Queens era praticamente um complexo de entretenimento gay situado num bom bairro no centro de Salvador. Não preciso dizer que o estabelecimento foi vanguarda em muitos quesitos. Hoje por exemplo a tão famosa e estigmatizada Festa da Cueca da Tropical Club deve muito sua existência em Salvador as famosas edições da mesma na Queens Club. Fui cliente de TODAS as partes da Queens e digo com propriedade, experimentar o estabelecimento naquela época (frequentei o club na minha época universitária) era algo realmente diferente e incrível.
Quem viveu os anos 90 e 2000 sabe. O acesso a qualquer material relacionado a homossexualidade, pornográfico ou não, era muito difícil e gerava graves constrangimentos. Com visão para o negócio, André enxergou nessa dificuldade do publico um up para construção de seu produto. Dito e certo, a Queens foi sucesso durante anos em Salvador. Sendo a boate uma boa concorrente da famosa Off Club situada na Barra. Hoje ela pode ser encarada como apenas um ponto comercial antigo, mas ali tudo era permitido. Das amizades gays, difíceis sem os meios de comunicação que temos hoje, à paquera (termo de velho, sinto muito) e o sexo pelo sexo, porque não?
Por isso, a cada minuto de Circus Of Books, nome original do documentário, bate um saudosismo de um tempo que uma boate não era apenas uma boate. Estar ali era um movimento conspícuo de empoderamento. Mesmo o termo não existindo na época. Afinal de contas, estar ali era fruto de uma atitude gigantesca de cada cliente. Dizendo mentiras para a família, inventando desculpas para os amigos héteros, burlando tudo quanto era tipo de desconfiança, só para estar com os seus, ou usufruindo dos prazeres que o local proporcionava.

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Hoje, esses locais completamente desapareceram. A internet facilitou o acesso, mas também fechou muitos bares, boates, até as saunas estão sofrendo atualmente com o fenômeno dos apps de pegação. São outros tempos, mas fica o registro histórico, da coragem do casal em manter um negócio perseguido até pelo FBI e agradecimento da comunidade gay ao grande feito da Circus of Books.

Filipe Cerqueira é diretor da SOUDESSA Cia de Teatro, historiador pela UNEB, realizador audiovisual pelo Projeto Cine Arts – UNEB – PROEX e apaixonado por cinema.