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As primeiras vezes que transei depois de dizer ‘Eu tenho HIV’

Genilson Coutinho,
13/08/2014 | 11h08

camisa

No dia 18 de outubro de 2010, por volta das 9 horas da manhã, descobri que sou soropositivo. Faz, portanto, pouco mais de três anos que convivo conscientemente com o vírus da aids, o HIV.

O meu diagnóstico se deu acidentalmente, no primeiro check up de rotina que fiz em minha vida, aos 26 anos de idade. Sim, foi inesperado e foi um susto. A primeira coisa que pensei foi que iria morrer. Essa foi, aliás, uma das perguntas que logo fiz ao médico infectologista que visitei, um dia após do diagnóstico, ainda devastado emocionalmente e depois de uma noite sem dormir.

— Morre, doutor?”

“– Não, hoje não morre mais.”

Depois de me examinar, procurando por nódulos na garganta, axilas e atrás dos joelhos, o doutor me explicou que eu faria alguns exames. Disse também que, de acordo com os resultados destes, eu começaria um tratamento que deveria aderir diariamente, até o fim de minha vida ou até que descubram a cura. Me garantiu que minha situação de saúde não era alarmante e que, apesar de considerada uma “doença grave” o HIV não é, já há algum tempo, considerado mais como uma “doença letal”.

 

Ele não perguntou detalhes sobre a origem da minha infecção. Aliás, nunca médico algum fez esta pergunta. Mas, embora isto seja irrelevante do ponto de vista médico, com o tempo compreendi que esta é uma questão que suscita, sim, bastante curiosidade do público leigo. Por alguma razão, uma das primeiras perguntas que um soronegativo ou um indivíduo de sorologia desconhecida — isto é, aquele ou aquela que nunca fez o teste de HIV — é exatamente esta: como você pegou HIV?

Ouvi essa pergunta de três mulheres com quem saí depois de receber o meu diagnóstico. Por opção minha, e contrariando a sugestão de meu infectologista, eu preferi contar sobre a minha condição sorológica antes de qualquer relação sexual com elas. Como consequência, percebi que acabei criando certa subversão do status quo dos relacionamentos atuais. Afinal, no mundo de hoje, onde o sexo não mais é consequência da intimidade mas parte do processo de criação desta, não é simples encontrar os meios de revelar algo que, no fundo, é nada mais que algo importante e pessoal.

Como contar sem criar medo e pânico? Qual o momento certo? Quem são as pessoas certas e dispostas a ouvir tal revelação? Estas são as perguntas que rondam a mente de todo o soropositivo e soropositiva que pretende contar antecipadamente sobre sua condição sorológica a qualquer parceiro. No pensar demais sobre elas, algumas mulheres sentiram-se enroladas e rejeitadas, e distanciaram-se de mim, o parceiro lento em avançar para o sexo. Percebi, então, que esta não era uma equação tão simples. A única solução, ao que me parece, é ser claro e direto, fazendo transpassar em minha fala a mesma tranquilidade que passei a ter com o vírus: com os devidos cuidados, ele não é nada demais — nem contra mim e nem contra com quem faço sexo.

Com isso, levantei os pontos mais importantes a serem incluídos nos mesmo discurso da assustadora revelação, que é afinal dizer “eu tenho HIV”. Assim, às três mulheres com quem saí desde que fiquei solteiro, adiantei que bastaria usarmos camisinha para que a relação fosse completamente segura. Questionado sobre os riscos e o que fazer caso a camisinha estourasse, expliquei que minha carga viral — isto é, a quantidade de vírus circulante no sangue — é indetectável há exatos dois anos e onze meses e que não tenho qualquer outra doença sexualmente transmissível.

Nessas condições, conforme esclarecido pelo estudo HPTN 052, que analisou diversos casais sorodiscordantes, o risco de transmissão do HIV sem o uso de preservativo é reduzido em 96%. Logo, incluindo-se nessa conta o uso do preservativo, que possui estimada eficácia de 99%, a chance de transmissão do vírus é, digamos, quase a mesma de ser atingido por um cometa. A partir deste importante estudo, aliás, conclui-se também que transar com um indivíduo de sorologia positiva para o HIV — desde que este esteja em tratamento, com carga viral indetectável há mais de 6 meses e sem nenhuma outra DST — é mais seguro do que transar com um indivíduo de sorologia desconhecida. A razão disso é muito simples e lógica. Um indivíduo de sorologia desconhecida é, potencialmente, um portador não-tratado de HIV ou outra DST. Sem tratamento, sua carga viral pode ser alta, especialmente em casos de infecção recente, o que é, sabidamente, o estado mais crítico e arriscado para a transmissão do vírus.

Feito este discurso, duas das três mulheres escolheram em prosseguir com o relacionamento. Uma delas, o fez apenas após confirmar as informações com um médico. A outra, talvez por não ter feito isso, sentiu-se amedrontada e, depois da relação sexual, repetiu três vezes o teste de HIV — todos negativos.

Minha ex-namorada, com quem, sem saber que estava infectado pelo vírus, transei diversas vezes ao longo de três anos sem preservativo, também não foi contaminada pelo HIV. Um milagre, sem dúvida alguma. Mas eu sou daqueles que acredita que milagres também têm explicação científica: aprendi depois que, uma vez que minha carga viral era naturalmente baixa, as chances de transmissão também eram baixas. Além disso, por ser descendente direta de europeus nórdicos, é bastante possível que ela seja naturalmente imune ao vírus, graças à mutação CCR5 Delta 32, que não confere às células CD4 do sistema imunológico o principal conector que o vírus usa para estabelecer a infecção.

De tão eficaz, um transplante de medula óssea a partir de um doador com esta mesma mutação a um paciente soropositivo que sofria de leucemia lhe conferiu, até o que se afere até o momento, a condição de primeiro curado do HIV no mundo. Timothy Ray Brown, também conhecido com “o Paciente de Berlim”, não faz mais uso de medicamentos antirretrovirais e não apresenta mais traços de infecção pelo vírus. A cura de Timothy foi reconhecida pela comunidade científica como “cura esterilizante”, isto é, ela eliminou a presença do vírus de seu organismo.

 

Outros 16 pacientes no mundo também são considerados curados. Quatorze soropositivos que participaram do estudo francês intitulado Coorte VISCONTI, uma bebê do estado americano do Mississippi, cuja mãe não sabia ser soropositiva, e um indivíduo alemão de 67 anos de idade são considerados pacientes “em remissão” ou “curados funcionalmente”, isto é, possuem o vírus, mas em quantidade tão insignificante que este não consegue estabelecer uma infecção propriamente dita.

Esses casos são importantes porque, além de oferecer uma compreensão sobre os avanços no tratamento e na pesquisa da cura do HIV, fazem-nos lembrar da eficácia significativa da profilaxia. A bebê do Mississippi, por exemplo, foi tratada com antirretrovirais imediatamente após seu nascimento, mesmo antes que se identificasse seu status sorológico. Este procedimento é similar ao que, no Brasil, é oferecido pela rede pública a todos aqueles que passam por uma clara situação de risco, chamado de profilaxia pós-exposição. Se administrada em até 72 horas da possível exposição ao vírus e mantida pelo paciente seguindo as corretas orientações médicas ao longo das semanas seguintes, ela pode prevenir completamente a infecção do HIV. Graças à grande eficácia dos antirretrovirais, também discute-se hoje o uso da profilaxia pré exposição, isto é, o uso destes medicamentos para situações de conhecida ou premeditada exposição ao risco, como, por exemplo, no caso de casais sorodiscordantes que querem ter filhos, mas não têm obtido sucesso ou não possuem recursos para a inseminação artificial ou, nos casos em que o parceiro soropositivo é o homem, a inseminação artificial com lavagem de sêmen.

Noutras palavras, a ciência e a medicina já oferecem condições plenamente seguras para que todos convivam bem o HIV. Temer o vírus é natural, mas não é preciso temer quem o porta. Enquanto soropositivos devem se tratar, todos devemos sempre nos prevenir. Por sua vez, aqueles que não sabem qual é exatamente sua condição sorológica devem procurar sabê-la, em prol de sua própria saúde e do controle da epidemia no mundo.

É preciso ter em mente que basta usar a camisinha para se proteger e que a falha, a qual bem sei que é tão humana, virá. Nessas condições, lembre-se da profilaxia e não exponha parceiros e parceiras ao risco até ter ciência de seu estado de saúde. No caso de um eventual diagnóstico positivo você certamente vai chorar e sentir medo, claro. Mas, com o tempo, garanto, perceberá que este vírus não muda tanta coisa em sua vida — nada além da necessidade de cuidar da saúde, tomar as medicações todos os dias e fazer os exames de controle a cada três ou quatro meses. E, quando resolver contar a parceiros e parceiras sobre sua condição sorológica, ouvirá, assim como eu ouço “como você pegou HIV?” A resposta, pura e simples, é apenas: transei sem camisinha.

Do Brasilpos