Cada minoria carrega uma cruz – Por João Barreto

Genilson Coutinho,
25/03/2011 | 13h03

 

 

Acredito que cada minoria política carrega, a seu modo, uma cruz, um traço marcante e dominante que ordena e categoriza todos os preconceitos recorrentes e identificados àquele grupo específico. A cruz é um presente das maiorias políticas, naturalmente, e resulta de grandes equívocos perpetuados através da história, modificados com muito trabalho de longo prazo e acesso à boa educação e à cultura.

Os negros e seus descendentes, por exemplo foram relegados, historicamente, à condição de inferiores porque sua “raça” indígena da África não pareceu civilizada o suficiente aos olhos europeus do século XVI. No Brasil colonial e depois no Brasil imperial, inclusive, frutificou uma ciência importada da ex-metrópole no século XIX que preconizava a marginalidade natural inerente aos descendentes de africanos, a teoria lombrosiana. Das hipóteses de Cesare Lombroso nasceu a noção de que alguns seres tendem ao crime ou à marginalidade por carga genética, o que seria identificado facilmente por traços físicos. Os indígenas brasileiros sofreram tratamento análogo e foram retratados para a posteridade no mito do selvagem, bom e dócil (como Peri) ou mau e canibal como os algozes do clérigo Sardinha.

Os LGBTT porém, posto que não são etnia mas pertencem a diversas etnias, e são identificados por comportamento afetivo e sexual, são historicamente relegados à condição de… pervertidos. Quem nunca ouviu o famoso “não tenho problemas com gays, contando que não façam na minha frente” ou “acho que os gays são promíscuos”. E por gays entenda qualquer um – L, G, B, T ou T – do grande guarda-chuvas teórico que abriga a todos de comportamento sexual diferente do heterossexual.

Historicamente, a cruz gay tornou-se a perversão por inúmeras razões. O comportamento sexual destoante da heteronormatividade – padrão de comportamento social, político e cultural ditado pela heterossexualidade e pelo machismo – não é invenção moderna, porém as regras de unidade familiar regida pelo relacionamento heterossexual monogâmico são uma invenção recente, que remontam à Idade Média. Na Grécia Antiga, o sexo fortalecia o laço acadêmico (e portanto intelectual) entre pupilo e mestre. Em Roma Antiga, o sexo servia como entretenimento e não apenas para fins reprodutivos. As orgias romanas eram sinal da opulência de um núcleo familiar. Com o fim de Roma, e a segmentação política europeia, a Idade Média trouxe a culpa cristã e os preceitos fundamentalistas do catolicismo tomaram conta da Europa e marcaram a história do Ocidente para sempre. Daí em diante, o sexo era para fins reprodutivos e apenas entre homem e mulher. A Reforma Protestante popularizou os Evangelhos no sentido de traduzi-los do latim, mas em termos de estrutura social pouco foi modificado. De natureza mais libertária, tanto pelas pressões católicas quanto por contextos favoráveis, os países europeus de matriz protestante tendem a ser mais liberais com os LGBTT do que os de herança cristã católica, como a Holanda e a Dinamarca.

Com a liberação sexual dos anos 60, e o início pela luta dos direitos civis dos LGBTT em 1969 em Stonewall Inn, Nova Iorque, os LGBTT passaram a existir socialmente, a ter visibilidade, o que, historicamente, tem ocasionado mais pressão homofóbica tanto por parte de correntes conservadoras nos governos quanto nas próprias sociedades e núcleos familiares (vide matéria da Revista Época de 7 de março de 2011, nº668). O efeito colateral da liberdade alcançada a partir de 1969 é o estigma de vida desregrada. O que a terceira geração tanto do movimento feminista quanto do movimento LGBTT nos ensina é que não há modelos corretos de relacionamento ou de família.

Existem sim comportamentos éticos e antiéticos, mas tais comportamentos existem em qualquer parte e em qualquer grupo demográfico. É, porém, certamente antiético considerar que, se um grupo rejeita o matrimônio e a estrutura familiar herdada da sociedade heterossexual, ele é automaticamente promíscuo ou de vida desregrada. Como diz Vic Grassi (interpretado por Jack Wetherall) da Queer As Folk americana (2001-2005), “’promíscuo’ é qualquer um que consegue mais sexo do que você”.

Existe alguma aceitação social (que, acredito, está longe de ser suficiente): já se reconhece que os LGBTT existem, o que, dado o contexto machista e heteronormativo em vigor pelo globo, é uma grande conquista. Mas muito precisa ser feito e as constantes agressões e crimes de natureza homofóbica pelo país só confirmam isto. O preço da cruz que os LGBTT carregam é ter aquilo que os identifica, seu comportamento afetivo e sexual, considerado nojento por uma sociedade basicamente machista e medieval. O que você precisa lembrar é que tanto faz com quem você dorme ou com quantos você dorme, se o seu relacionamento é aberto ou fechado, se você quer ter filhos ou não quer ter. Só quem pode determinar isto é você, não a sociedade em que você está inserido.

João Barreto – Jornalista

Jornalista e mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. É analista de comunicação e cultura, especialmente de poéticas audiovisuais. Também tem interesse em desenvolvimento sustentável