Colunistas

A inconsciência da existência do gay negro

Filipe Santos,
18/11/2020 | 23h11
(Foto: Divulgação)

Contar quantos negros tem no ambiente, ser expulso da calçada da loja de grife, se despir no supermercado para comprovar que não está furtando, ser alvo de 80 tiros por engano… esses são alguns dos cenários que toda pessoa negra é ameaçada a viver diariamente. A situação fica mais agravante quando essas mesmas pessoas carregam consigo outros identificadores que também sofrem historicamente discriminação social, como ser gay, por exemplo.

Enquanto o gay branco segue livre para romper as barreiras da homofobia na mídia, protagonizando filmes, estampando capas de revistas e dialogando em programas de entrevistas, o gay negro fica por detrás das cortinas do racismo, sendo silenciado e invisibilizado cada vez mais. Além disso, o gay negro se depara muitas vezes com a dubiedade em ter que escolher de qual preconceito ele se defenderá: racismo ou homofobia?

Sabe de uma… nem eu queria estar falando sobre isto novamente. Hoje em dia todo mundo já conhece alguém que aborde esses temas nas rodas de conversa, twitter ou instagram (mesmo que não haja veracidade na relação entre a teoria e prática desses militantes), mas eu não posso fechar os olhos para sensações que me atingem rotineiramente. Para desenvolver esta matéria com mais franqueza, fui em busca de outros olhares e vivências além das minhas. Conversei com alguns gays negros e a partir de agora vou inserir trechos das entrevistas que eu fiz com eles, para reafirmar que apesar de muitas pessoas estarem cansadas de ouvir/ler sobre racismo, homofobia e outras lutas por igualdade, essas discriminações ainda são latentes perante os nossos corpos. Para preservar a individualidade, os nomes ficarão no anonimato.

Não é de hoje que presenciamos nitidamente uma cultura do auto-ódio dos negros, esse processo cruel é instaurado desde muito cedo pela sociedade, familiares e amigos que não permitem que nos olhemos com carinho perante o espelho, que tenhamos repulsa com os traços negroides e desvalorizemos os nossos cabelos. Essa interdição se perpetua em nossas escolhas afetivas e no final das contas não conseguimos admirar os nossos semelhantes porque não nos apreciamos, o que faz com que tenhamos de transformar nossos corpos e reforçar as convicções iniciais que foram impostas sobre nós. O que nos resta é a mutilação da nossa fisionomia ou a musculação e virilidade como alternativa ao enquadramento na categoria ‘’negros’’ da indústria pornográfica e acabar palmitando, tendo relacionamentos com homens brancos e uma falsa ilusão de compensação.

‘’O meu processo de aceitação mais difícil foi com a largura do meu nariz, já imaginei fazer cirurgia milhares de vezes.’’

Ouvimos falar que o carnaval de salvador é um paraíso para os gays ou que os gays vão dominar o mundo, mas de qual gay a população está falando? A sensação de não pertencimento até nas esferas que deveriam nos favorecer nos causa aflição e descrença numa possível evolução perante a luta de inclusão por todes. Mesmo estando na capital mais negra do país, nós passamos despercebidos na maioria das boates e bares com temáticas LGTQIA+. ‘’Não somos preferência nas noitadas e nem estamos dentro dos possíveis para compromissos amorosos, nós somos aquele que volta sozinho ou só nos tornamos interessantes no final da festa’’.

A onda de reviravolta que está se propagando por aí, através de manifestações e pequenas inclusões, precisa ir na contramão dos sistemas de opressão para além dos dias 20 de novembro e 13 de maio e inserir a pauta da interseccionalidade na luta. Precisamos pleitear movimentos que reconhecem a diversidade que há dentro da própria diversidade para podermos começar a extinguir as necessidades de abordar temas como este. As pessoas que mais querem que os diálogos de opressão, rejeição ou aversão sejam extintos, são os oprimidos e os rejeitados. É muito cansativo ter que andar armado 24h por dia no combate ao racismo e homofobia que surge de onde já estamos esperando ou aqueles que nos pegam de surpresa, além de ter que ficar analisando brincadeiras na roda de amigos, comentários e elogios sublimares, antes de rir ou concordar.

Talvez, saber quem somos e ir em busca pelo entendimento genuíno dessa exclusão gratuita que recebemos seja uma das chaves para dizimar e rebater atitudes racistas e homofóbicas. Os movimentos que nos auxiliam nesse desmonte precisa do apoio do gay branco que prega o antirracismo, precisa do reforço do hétero que não propaga a homofobia… de vocês que possuem mais visibilidade e espaços midiáticos à nós, peças fundamentais para eliminar a omissão do gay negro nos espaços profissionais, familiares e outras relações afetivas. ‘’Foi através de pesquisas que encontrei respostas e passei a viver de uma maneira mais livre e já consegui declinar flerte de um branco por saber que havia uma problemática por trás.’’

Jornalista, negro, ex hetero, fã de caipirinha e da Vanessa da Mata.