Cinema

No Circuito

A Cidade do Futuro que é agora por Caio Cerqueira

Genilson Coutinho,
07/05/2018 | 01h05

Caio Cerqueira

A Cidade do Futuro foi promessa escrita com os fluxos de água do São Francisco. As centenas de famílias remanejadas para o Futuro em formato de Cidade, sem liberdade, viram seus cotidianos submersos sob a constituição de um novo modo-operandis-vida. A Cidade do Futuro que nos apresenta Igor, Milla e Gilmar, é uma cidade que parece nascer agora da contraditória escravidão que antes lhe foi designada, num grito atual de liberdade, através do mais pulsante debate que nos constituem em 2018. Esse debate envolve, sexo, sexualidade, família, política, enrijecimento, flexibilidade, uma gramática da existência para falar de nós, dos nossos tempos idos e dos que virão, porém, tudo isso, no agora, no presente que nos impõe a tessitura do dia-dia.

O filme cansa. Cansa pelo fato das escolhas técnicas desde o roteiro, à equipe de atores e atrizes e a própria construção de sua narrativa poética crua em imagens, sons. Sem igual, ele é inquietante assim como o tema que aborda. Finda de forma brusca, quando a gente, já cansado, torce para dar sentido a narrativa e elaborar o filme em nossa mente. Porém, esse findar brusco – escolha técnica do/a diretor/a Cláudio Marques e Marília Hughes -, engrena o turbilhão de possibilidades que as representações deixaram na tela. Vale a pena.

Em Serra do Ramalho, Igor, Milla e Gilmar seguem os rumos de suas vidas. Um vaqueiro, uma professora de teatro e um professor de geografia, passam despercebidos aos olhares transeuntes no sol de um sertão que machuca a terra, a moleira e as vidas empobrecidas por políticas de Estado excludentes. Nesse ir e vir do interior da Bahia, onde a paisagem é de muito chão de terra batido, poeira amarela, motocicletas, pessoas de humilde envergadura e animais servindo para o transporte humano e de carga, brota a relação amorosa entre um casal gay e uma moça que engravida de um deste. “Quando eu os vi num bar, em uma noite de outono, sentados conversando feito bons amantes, eu pensei: vou dizer a eles que quero ter um filho deles”. Essa fala é de Milla, logo após a sessão de estreia do filme em Salvador. Assim como Milla, Igor e Gilmar estavam no cinema e puderam falar dessa quase biografia de suas vidas. Nascidos e criados na região, hoje vivem os três e o fruto dessa relação – um lindo bebê, ainda na tentativa de compreender o alcance do que foi exposto mundialmente e como isso já tem mudado e mudará os rumos de suas vidas.

Cidade do Futuro capta muito bem as potencialidades do humano e das coisas, sem nomear, sem querer dizer o que é, Milla, Igor e Gilmar vivem essas possibilidades nas potencias de suas vidas, e para além de qualquer teorização, nos apresenta o fácil da vida que é desejar e praticar na roda viva do social, desse mundo explícito e que nos cobra definição. Em certo momento do debate pós filme, questionei-os sobre essa teorização sobre a relação que vivem: “vocês já teorizaram sobre isso? Vocês conseguem nomear, digamos, o tipo de relação que tem construído?”. A resposta já era esperada, pois ela nasce com o inesperado por todos nós tendo em vista o campo, os atores, embora não a época em que tudo isto esteja ocorrendo.“Não” me responde Milla, e continua “alguns dizem que é poliamor, relacionamento aberto, maluquice, mas para nós não passa da gente usufruindo da nossa vontade de viver isto.”

A cidade no interior da Bahia, talvez hoje já tenha escrito sua história no futuro, não com os objetivos que lhe fizeram nascer. Sua história prévia pouco importa perante as vidas vividas. Ela nunca mais será do futuro, pois hoje já vive esse futuro feliz de ganhar o mundo com uma história, agora, atual.

 *Caio é professor no Instituto Federal do Rio Grande do Sul
e Doutorando em Ciências Sociais na UFBA.