Transmetrópolis e a diversidade de manifestações do desejo

Genilson Coutinho,
07/06/2011 | 19h06

Na última sexta-feira (03), estreou, no Solar da Boa Vista, em Brotas, Transmetrópolis, espetáculo (direção e texto) de Felipe Harpo e com o ilustre Valécio Santos, conhecido entre os entendidos e inteirados da cidade como Valerie O’rarah. Na ficção, em Pirajá, prestes a se mudarem para outra residência, a travesti Shirley (Valécio) descobre que seu marido Alberto (Henrique Bandeira) quer fazer a cirurgia de mudança de sexo pois, segundo ele afirma, sente que o seu sexo psicológico não coincide com o seu sexo físico. Não bastasse o temor perante todas as mudanças que acenam no horizonte, o casal ainda tem que administrar o fundamentalismo religioso do amigo de longa data Moisés (Ronei Silva) e compreender a transformação pela qual passou Neusa (Vanessa Cardoso), outra amiga do grupo.

Após sofrer a perda de um amigo, Moisés, ou “Momô” como costumava ser chamado, passou a integrar as fileiras dos famigerados ex-gays, indivíduos LGBT que são levados por promessas de salvação a grupos religiosas para se adequarem ao padrão heteronormativo e se convencem que mudaram de orientação sexual. Ou seja, Moisés… virou “crente” e se diz hétero e disposto a expulsar o demônio do “homossexualismo” do casal, atuando ironicamente ele mesmo como uma espécie de arauto do infortúnio, a próprio definição de diabo (elemento desorganizador). Neusa, amiga de todos, é a estrangeira, que vem de terras distantes, trazendo notícias e novidades, na função de unificar as paixões e os afetos do grupo de amigos.

Apesar de usar aqui e ali elementos cômicos – gritar para um evangélico que “Jesus não é surdo” é um bom exemplo -, o espetáculo mais se aproxima do melodrama, dada a sua natureza carregada de emoções e dilemas e nos remete à adaptação de Um Bonde Chamado Desejo de Elia Kazan (peça de Tennessee Williams). Ambos as ficções tratam do desejo enquanto força da natureza e apresentam um contexto marginal, suburbano e decadente.

Fica aqui a minha grata surpresa. Segundo um interessante artigo opinativo do escritor Paolo Bacigalupi, a maioria da ficção costuma tratar de coisas passadas (costumes, situações possíveis etc), isto é, quando não é ficção científica e especula sobre o futuro. Se o segmento mais marginalizado dos LGBT, que são os travestis e transgêneros, ganha espaço na ficção popular, em um teatro mantido pelo governo, é sinal de que a realidade dos LGBT tem melhorado e é, gradativamente, incorporada à cultura mainstream baiana.

Além disso, estamos sempre narrando histórias a partir de nossas experiências, de coisas que já aconteceram e acontecem comumente. Mesmo o texto mais ficcional está apoiado na realidade pois a nossa linguagem está apoiada na realidade. E reside neste argumento também a importância de ter um ator transformista de verdade interpretando a travesti Shirley. É da realidade que se compõe ficção e Valécio foi uma boa escolha para o papel visto que conhece as felicidades e dissabores de ser transformista numa capital machista e homofóbica como Salvador. Shirley tem muito em comum com a Stella (de Williams e Kazan) e até o próprio Alberto tem lá as suas semelhanças com o atraente brutamontes Stanley Kowalski. Já Momô é, a meu ver, o equivalente perverso de Blanche DuBois, aprisionado em seu próprio delírio de pureza e grandeza.

A atuação, em Transmetrópolis, porém, é uma faca de dois gumes. Se por um lado seu pé na realidade garante solidez e poder dramático ao espetáculo, peca-se na verossimilhança na representação de transexuais. Entendida a função dramática e poética de um Stanley Kowalski em Transmetrópolis – seduzir Shirley -, falta-lhe a fragilidade emocional e sentimental da rejeição ao próprio corpo experimentada pelos transexuais. Compreendo que o personagem deve manifestar ambos os aspectos, mas falta equilibrá-los: a cena em que rejeita a própria genitália é frágil e curta para tornar o seu nojo plausível. Acredito, porém, que isto deve vir com o tempo, quando os personagens tornarem-se mais circulares e mais presentes na vida dos atores que lhe dão carne e osso.

Transmetrópolis é também um espetáculo rico tecnicamente sem se deslumbrar com seus recursos cênicos e, o melhor de tudo, sem deixar o seu inteligente texto de mão. Seus quatro protagonistas de início declaram chavões que os definem e os apresentam instantaneamente, o que é bastante eficaz em termos de economia da narrativa. No decorrer da história, camada sobre camada, cena após cena, a fábula vai se compondo retroativamente a partir de fragmentos temporalmente desordenados do mesmo fluxo de eventos. Os fragmentos se sobrepõem para dar as dimensões do nó trágico com direito a reviravolta e muito humor amargo sobre o fanatismo religioso e a hipocrisia que este costuma trazer consigo.

O que fica em evidência é que o desejo é algo que se manifesta e não que se define e é efêmero e transitório. A mudança de residência dos personagens ecoa na mudança de sexo de Alberto, imitando as coincidências que nos permitem interpretar o nosso cotidiano através de nossos próprios sentimentos: o céu que está azul como a minha felicidade ou nublado como a minha tristeza, por exemplo. Ou o mar que está encrespado como o meu humor nesta manhã e por aí vai… Mesmo o suposto vilão, Momô, se explica no medo, um dos grandes freios do desejo. Como lembra Nossa Senhora nO Alto da Compadecida, nós temos medo da morte, da danação (o inferno religioso para os que crêem; ou a danação de viver uma vida sem sentido para os ateus). Por termos medo e por termos desejos inomináveis, somos patéticos como Momô ou dramáticos como Alberto ou fortes como Shirley. Por essa mesma razão, também nos mostramos, eventualmente, perversos.

Por

João Barreto – Jornalista

Jornalista e mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. É analista de comunicação e cultura, especialmente de poéticas audiovisuais. Também tem interesse em desenvolvimento sustentável.

Fotos: Genilson Coutinho