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30 anos após aids virar epidemia, homens gays ainda são impedidos de doar sangue

Genilson Coutinho,
10/10/2014 | 11h10

sangue

Felipe Amaro queria doar sangue. No último dia 23, ele foi com um amigo ao banco de sangue da Santa Casa, onde encontrou, afixados nas paredes, panfletos alertando que manter relações sexuais desprotegidas é critério para descartar um candidato à agulhada. Nada que o desclassificasse. Chamado à triagem, Felipe se saía bem — nem espirros de resfriado, nem ingestão recente de bebidas alcoólicas, nem consumo de drogas, nem tatuagem no último ano —, até que veio a pergunta: “Já teve uma relação homossexual?”

É que, além de ter 19 anos, fazer cursinho pré-vestibular e chulear vaga em curso de História, Felipe também tem um namorado, e homem com homem, ali ele descobria, não tem vez no banco de sangue.
Ela (a triadora) disse que existe uma lei que impede homossexuais de doar sangue. Ela própria estava constrangida em falar isso. Eu disse que poderia fazer exames, me expor mais, provar que estava “limpo”, mas não adiantou. Foi como ouvir do Estado brasileiro que “aqui ninguém quer o teu sangue sujo” — conta Felipe.

Os bancos de sangue seguem portaria do Ministério da Saúde na qual, embora não se leia a palavra “homossexual”, há entrelinha para que se leia a discriminação:são “inaptos” para doação de sangue, por 12 meses, “homens que tiveram relações sexuais com outros homens”. Em resolução sobre as “boas práticas no ciclo de sangue”, publicada em junho deste ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) repete a orientação da pasta.
Infectologista da Santa Casa, Cynara Carvalho Nunes explica que, na comparação proporcional com héteros, a aids voltou a crescer entre homossexuais, reencenando a distribuição desigual da doença no início da epidemia, nos anos 1980. A prevalência do HIV seria de 10,5% entre os homens que referem ter mantido relações sexuais com homens, contra 0,5% na população em geral:

— Não vejo posição preconceituosa, e sim técnica, baseada em estatística e epidemiologia — sustenta.

O agravante alegado para o sexo entre homens é a alta vascularização da mucosa anal, que facilita a infecção pelo HIV. Cynara concede que as orientações do ministério devem estar sujeitas a revisão, desde que mude também o perfil da epidemia.

Leonardo Vaz, presidente da Comissão de Diversidade Sexual da OAB/RS, ressalta que homens e mulheres heterossexuais também praticam o sexo anal e nem por isso estão contemplados nas restrições. A Comissão Nacional de Diversidade Sexual da OAB pediu no final do ano passado a alteração do regulamento, o que foi negado pelo Ministério da Saúde.

De acordo com a psicóloga Sandra Garcia Bueno, responsável pelo núcleo de doadores do Hemocentro do Estado, os estoques de sangue estão em situação crítica.

— Atendemos 52 hospitais e, infelizmente, mantivemos, nos últimos meses, índices cerca de 40% inferiores em relação à meta — ela lamenta, reiterando que as triagens precisam seguir o que manda o governo, cujas resoluções “devem ser discutidas, mas com critérios técnicos e à luz da ciência”.

Contra o silêncio

“Ápice” de uma narrativa de preconceito, relata Felipe, o episódio na Santa Casa sucedeu uma infância na qual ele jamais pôde estudar por mais de um ano na mesma escola. Em uma temporada particularmente ruim, foram quatro colégios em 12 meses.

— Por sorte, sempre entendi que o problema era deles. Tive vários amigos que, por colocarem o problema em si mesmos, tentaram o suicídio. Passei por situações de depressão por me sentir marginalizado. Não me sentia acolhido pelo sistema educacional nem pelos colegas.

O itinerário escolar atulhado de ziguezagues faz justiça a uma personalidade pouco disposta ao silêncio. Recentemente, Felipe ousou ensinar uma professora do pré-vestibular o equívoco do termo “homossexualismo”, usado para rebaixar a homossexualidade ao nível da opção pessoal, do vício, quem sabe até da doença. A lição foi varrida com cinismo: “então capitalismo também é doença?”. Decerto que não: um processo histórico, econômico, quem sabe até um vício, mas nada que constitua uma pessoa.

— Não concordo que usem a minha sexualidade para fazer piada na frente dos outros, como se eu fosse atração de circo. Todo mundo vai rir, tirar sarro da minoria é muito fácil. E é uma situação em que tu sentes que não existe.

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